Eu me sento outra vez
Nessas cadeiras de bar
E te encontro no ausente
No infinito do teu mar.
E não me digas
Que mesmo de repente
Tu, que eras tão contente
Ainda persiste em me amar.
Não verás que talvez eu fuja
E em minha fuga talvez eu minta
E em meio tanta palavra suja
Ainda há algo que se sinta
Já não eras tu meu maior amor
Já não era eu teu maior delírio
pois que do fogo do amor
nada mais restou do que o brilho.
N. Lopes
Voltando a pensar no que mais sentia doer, não via motivo, muito menos saída para tudo que estava vivendo. Desde alguns dias, andava por um labirinto formado de espinhos e, a cada dia, os espinhos cresciam e se tornava mais difícil caminhar para qualquer lugar que fosse, pois, saída, nem acreditava que poderia existir. Os cortes e arranhões não se cicatrizavam e por onde andava uma parte de si era perdida pelo caminho.
Por mais que lhe insistissem em dizer que sonhos têm que ser sonhados com cuidado, prudência e ao mesmo tempo audácia e um pouco de loucura, já havia cansado de pensar na beleza das coisas, já que sempre lhe davam motivos para desacreditar em sonhos. Sabia que não podia ser assim, embora o fosse. E os dias passavam, enferrujados.
A viagem vai começar. Tenho um segundo, antes que outros apareçam, pra descobrir o que ainda me falta. E é neste segundo que a memória me restitui um sonho antigo,recorrente, daqueles sonhos em que se juntaram todas as cores do mundo: por um lago de águas baixas, de pouco mais que um palmo de altura, avanço na direção de um Palácio, enquanto a água faz um rumor de seda rasgada. Avanço por este lago, nu, sob o sol claro, e aos lados há a mesma árvore enorme e quieta. Não sei o que isto significa, que coisas estão sendo murmuradas neste sonho, mas certamente o tempo futuro me dirá.
Nu, avançando as águas, tão simples, como uma lei que tudo explicasse.
No corpo cálido escorria leve e enlouquecidamente uma gota de suor. No pulsar do peito ouviu as palavras que lhe dizia o silêncio e viu coisas realmente difíceis de notar. Na melena viajou por noites e na aurora sentiu-se rei. E, ao tocar o corpo, numa passagem, sentiu em sua boca o sabor do éden. Os olhos faziam-no alucinado em uma leve e enlouquecida mente.
As luzes ao seu redor guiavam-no na escuridão e, sendo assim, não se importava aonde chegaria, pois direções não lhe diziam nada mais do que o silêncio. Mas o silêncio do outro corpo o diz o que queria e devia ouvir. E o que queria era não saber, não acordar, não ter mais olhos opacos para enxergar. Pois, para ele “o amor era um demônio desgraçado que vivia a lhe passar rasteiras”. Mata-lo haveria se, porventura o notasse, mas, ao menos o podia ver. Pálido, despertou em mais uma manhã. E planejara todo o seu dia em menos de um piscar de olhos. E, ao olhar-se no espelho, viu “o indivíduo e a muralha. O indivíduo contra a muralha”.
Apesar de tudo, a cada manhã, o sol novamente resplandece poesia. E eu, quando posso, continuo pensando que será mais um dia. Meus lábios já se ressecaram como o chão; e o que há pra beber, muitas vezes, nem escorre pelo rosto. Os olhos que antes olhavam o doce brilho da mulher que ontem se foi, hoje só observam as crianças que ficaram aos meus pés ajoelhadas, quando aquela saiu para nunca mais voltar. Disseram-me que em algum lugar, bem longe, as coisas são melhores, mas eu ainda estou pensando. Dizem que lá é que se vive de verdade. Dizem que lá o sol nasce para todos; só a sombra que não é verdadeira, pensei. Mas eu prefiro aqui. Aqui é o meu lugar. Ouço daqui os gritos que ecoam por lá. E não quero participar daquela peça.
Quando acordei permanecia intacto. Sabia que nada havia mudado. Estava embaixo do céu noturno que me conduzira ao delírio. Os vaga-lumes brilhavam ao meu alcance como faíscas queimando a visão. O sussurro ainda permanecia a me estremecer. Havia tentado mais uma vez sonhar, mas não conseguira. Estava por perder meu maior desejo, continuando a viver como na infância, onde a pureza dos desejos não via maldade. Coloquei-me a lutar, mas, por sorte, esquivava-me de mim mesmo. Como um velho que já sem forças, caí. E meu rio congelado foi aos poucos se desfazendo, e assim pude ver além do que me mostrara a realidade. Então, adormeci.
Por trás dos rostos, via os olhos em direção ao chão. E os outros a lhe fitar o corpo, enquanto o brilho resplandecia em primeiro plano, na escuridão. E, além disso, pude ver as linhas que faziam a face se levantar tão facilmente que desacreditava e me afundava nas imagens. Falsificaram-me a verdade e todas as bocas que permaneciam caladas, agora seguiam em direção à carne. Dos gritos que partiram de mim só ouviram sussurros. Mas, à noite, as luzes nos enganam e por acaso vemos um mundo distorcido pela volúpia.
Traí-me ao ver a imagem no espelho. Pois sabia que o outro eu não era o mesmo que o olhava. A imagem que se reflete não reproduz o que vejo pensando. Sendo assim, só me via como os outros e nunca saberia me entender, por não saber olhar-me nos olhos. Meu delírio de outrora saltou os óbices abstratos de minha mente vindo a fomentar minha lucidez. Minhas águas novamente congelaram com o despertar. Sentia falta da leveza de meu corpo e afundei-me no vazio.
Eu que, como você, nasci no jardim
agora desconheço as faces que daqui brotaram.
Sei que não faria nada por mim
porque ao chão seus pés se agarraram.
E o que me conforta não é o som do vento
mas sim as flores que se balançam
ao ouvir sua música soar.
As flores brincam e dançam
pois se contentam em não mais poder amar.
Todos somos flores,
vindos da mesma semente.
E penso que o vento não mais me conforta
quando não vejo razão de existirem flores tão tortas
e de sentimentos tão diferentes.
Navego por rios escuros Os quais nunca sei por onde vão findar. E debaixo das pontes ouço murmúrios Que, por vezes, insisto em ignorar.
O cheiro, o gosto e a visão daqui Enlouquecem-me demasiadamente por noites Solitárias em que afogo dentro de mim.
Há fumaça, há sujeira. E meu medo? Não há. Daí nasce um perfume Que nem todos podem notar.
Há dias nem vejo a luz. E a noite nem é verdadeira. A única realidade deveras existente Não é minha existência. A única verdade É minha mera resistência.
Eu ando pelo universo. Atravesso pelo outro lado e não sei onde chego; eu nunca chego. A maioria das pessoas daqui se foi, só restaram corpos. Corpos que falam, batem, beijam, choram, mas não sentem. Corpos que matam, dizem que amam e mentem. Há corpos que mais se parecem armas de combate, outros corpos já se sentem como peças de uma imensa engrenagem. Eu sou um corpo, um corpo tomado pela ferrugem.
Chaplin morreu, a Filosofia se perdeu e, no seu lugar, um outdoor apareceu. Meu jardim se encheu de cinzas.
Aquele sussurro não me deixou dormir; algo me sacudia por dentro. Pois, quanto mais o tempo passava, mais a chama que queimava em meu peito era apagada; e meus olhos ficavam mais ofuscados. É assim que acontece com todos algum dia. Até que de tão ofuscados eles se apagam e as cortinas se fecham; e a escuridão toma conta de meu corpo. Eu não sei onde vou estar quando chegar. Se chegar em algum lugar.